Chego do trabalho, desço do elevador e sigo pelo corredor do andar onde moro. Numa mão, uma sacola de compras que há tempos faltavam no armário da cozinha. Já na outra, a ansiedade rolava entre os meus dedos, lutando contra o barulho das unhas batendo uma na outra, como se discutissem para decidir quem era o mais barulhento. Olho para a minha porta: familiaridade.
Suspiro, cansado. Tiro a mochila - e alguns outros pesos - das costas, a colocando na frente do corpo de maneira desengonçada. Eu abro um dos bolsos e tento pegar a chave escondida no fundo, às cegas, mas só encontro meus óculos escuros e a tampa do meu desodorante. Mexo a mão com raiva e nada, o que me faz rosnar como um bicho impaciente no meio da noite.
Sinto algo roçando no meu ombro, me arrepio sabendo o que viria e quando dou por mim, a alça da mochila já havia escorregado, soltando todo o seu peso sobre a minha mão. Tento segurar o que já tentava equilibrar. Fracasso. E logo tudo cai no chão com um barulho oco, no meio do corredor. Eu olho. Eu respiro. Eu mordo um pedaço de pele da minha boca. O barulhos das unhas batendo ficando mais forte.
Com a vontade de chorar, me sento no chão. Costas na parede gelada e a certeza de um resfriado. "Que se dane", penso e encosto a cabeça no concreto. Respiro fundo, fecho os olhos, respiro fundo e trago os joelhos para perto do peito, os abraçando com meus braços que pareciam mais longos do que eu podia imaginar. Escuto o barulho das unhas, batendo e batendo e batendo de novo.
Coloco a cabeça entre as pernas, abro os olhos e vejo o piso bege me encarando. Imagino o que o vizinho diria se abrisse a porta e me visse ali, em minha versão mais deprimente do dia. Aquele pensamento me arranca um sorriso, seguido de uma tremida de queixo que eu sabia que viria acompanhado de lágrimas de algum lugar. Tiro e queda: eu choro.
O nariz fungando me dizia que meus olhos estavam vermelhos, mesmo sem eu conseguir vê-los, por motivos óbvios. Solto uns palavrões, entre leves e pesados, para a bagunça e para mim mesmo. Naquele ponto da noite, não havia mais tanta diferença entre nós dois e eu sabia disso perfeitamente. Talvez por isso eu chorava. Como eu odiava aquela bagunça!
Sinto uma presença se aproximando, devagar e calmamente. Fico tenso, paralisado, minha respiração falha e a prendo como se tentasse manter o resto de ar que havia me sobrado nos pulmões. Se enroscando pelas minhas pernas, carregando toda aquela energia esquisita, um gato preto passa da esquerda para a direita e desaparece do meu ponto de vista. Eu não tinha gato, muito menos meu vizinho.
"Inferno", penso, sem realmente saber se fora em voz alta ou não. Porém, após segundos se passarem, me lembro seriamente de tomar cuidado com meus pensamentos. O bichano, pelo menos eu esperava que fosse de fato ele, sussurra em meu ouvido, como uma lambida sem permissão em minhas entranhas, uma série de sopros que eu não entendia, mas sabia perfeitamente o que significavam.
Meu corpo se estremece, meu coração palpita, minha lágrimas aumentam e eu gemo de desespero, sem conseguir me mexer com tantos medos e verdades que entravam gritando pelo meu corpo e se alojavam na minha angústia. Eu conseguia sentir o gosto do grito na minha boca e minhas mãos tremiam. O barulho das unhas aumentavam, tom após tom.
Dedos se esparramam pelos meus cabelos, os agarram com força e puxam minha cabeça para o alto. Meu rosto molhado, trêmulo, os olhos em carne viva. Vejo a mim mesmo me olhando, como um animal que nem era digno de ajuda. Ele se agacha, segura meu queixo com força e me beija sem eu querer. Ele impõe sua língua dentro de minha boca, me abusa com saliva e sussurros que o gato outrora já havia me contado.
"Basta", eu pensava. E ao mesmo tempo que eu sentia nojo, eu estava entregue, com a sensação de que me despedia cada segundo de mim mesmo. Eu queria gritar e ele, o grito, continuava me beijando, me sugando, me devorando de um jeito que eu não sabia dizer não, mesmo ainda chorando. Ele berra dentro da minha boca e eu berro para dentro da minha garganta.
Eu caio no chão, tremendo. Ele se levanta sorrindo e eu penso o quanto aquele impostor terminaria com a minha vida ali, agora. Eu não conseguia falar, e ele continuava sorrindo. Ele abre a porta, fecha os olhos e sente o cheiro de comida quentinha no ar. Eu choro, choro muito, querendo gritar por socorro, que não o deixasse entrar. Porém, ele entra.
Horas se passam e meu corpo, ainda fraco, tenta se recompor. Me arrasto até minha mochila, enfio a mão torta no bolso pequeno e sinto o metal gelado da chave me chamando ali dentro. Me apoio no chão, a palma da mão esquerda no piso gelado, a direita na parede de ranços e costumes, e subo me esfregando esquisito.
Me aproximo da porta, encosto a mão na madeira velha, ainda fraco e sem equilíbrio, encaixo a chave na entrada e a giro. Escuto o barulho grosso, quase rude. Ela trava, não se mexe. Forço uma, duas, três vezes e nada acontece, eu não conseguia abri-la. Me jogo para frente e rosno, batendo o dois punhos cerrados na porta com toda a minha vontade e desespero. Mais uma vez, eu choro.
Soluçando, dou três passos para trás, sinto as costas tocarem a parede do corredor. Observo o meu redor e percebo que aquela não era a minha casa, porém eu estava lá dentro. Eu havia entrado minutos atrás sem que quisesse, sem que eu pedisse. Um abuso, uma intromissão. Sinto algo roçando em minhas pernas, olho para baixo e vejo o gato preto ronronando carinhosamente perigoso.
Eu grito, me agacho no chão, junto os joelhos no peito, os abraço com os braços, olhos por entre as pernas, vejo o chão. Tudo de novo. Vou me dissolvendo, como um fantasma. O felino segue trocando de lados, direita e esquerda, esquerda e direita. Fecho os olhos e respiro. Choro, me recuso a me dissolver, não quero, não posso, não vou! Peço socorro e escuto o barulho da unha. Ele está contando, ele está morrendo.
Douglas Ibanez
(02/02/2020 - 2:32)