sábado, 7 de novembro de 2020

O Barulho da Unha

    Chego do trabalho, desço do elevador e sigo pelo corredor do andar onde moro. Numa mão, uma sacola de compras que há tempos faltavam no armário da cozinha. Já na outra, a ansiedade rolava entre os meus dedos, lutando contra o barulho das unhas batendo uma na outra, como se discutissem para decidir quem era o mais barulhento. Olho para a minha porta: familiaridade

    Suspiro, cansado. Tiro a mochila - e alguns outros pesos - das costas, a colocando na frente do corpo de maneira desengonçada. Eu abro um dos bolsos e tento pegar a chave escondida no fundo, às cegas, mas só encontro meus óculos escuros e a tampa do meu desodorante. Mexo a mão com raiva e nada, o que me faz rosnar como um bicho impaciente no meio da noite. 

    Sinto algo roçando no meu ombro, me arrepio sabendo o que viria e quando dou por mim, a alça da mochila já havia escorregado, soltando todo o seu peso sobre a minha mão. Tento segurar o que já tentava equilibrar. Fracasso. E logo tudo cai no chão com um barulho oco, no meio do corredor. Eu olho. Eu respiro. Eu mordo um pedaço de pele da minha boca. O barulhos das unhas batendo ficando mais forte. 

    Com a vontade de chorar, me sento no chão. Costas na parede gelada e a certeza de um resfriado. "Que se dane", penso e encosto a cabeça no concreto. Respiro fundo, fecho os olhos, respiro fundo e trago os joelhos para perto do peito, os abraçando com meus braços que pareciam mais longos do que eu podia imaginar. Escuto o barulho das unhas, batendo e batendo e batendo de novo. 

    Coloco a cabeça entre as pernas, abro os olhos e vejo o piso bege me encarando. Imagino o que o vizinho diria se abrisse a porta e me visse ali, em minha versão mais deprimente do dia. Aquele pensamento me arranca um sorriso, seguido de uma tremida de queixo que eu sabia que viria acompanhado de lágrimas de algum lugar. Tiro e queda: eu choro. 

    O nariz fungando me dizia que meus olhos estavam vermelhos, mesmo sem eu conseguir vê-los, por motivos óbvios. Solto uns palavrões, entre leves e pesados, para a bagunça e para mim mesmo. Naquele ponto da noite, não havia mais tanta diferença entre nós dois e eu sabia disso perfeitamente. Talvez por isso eu chorava. Como eu odiava aquela bagunça! 

    Sinto uma presença se aproximando, devagar e calmamente. Fico tenso, paralisado, minha respiração falha e a prendo como se tentasse manter o resto de ar que havia me sobrado nos pulmões. Se enroscando pelas minhas pernas, carregando toda aquela energia esquisita, um gato preto passa da esquerda para a direita e desaparece do meu ponto de vista. Eu não tinha gato, muito menos meu vizinho. 

    "Inferno", penso, sem realmente saber se fora em voz alta ou não. Porém, após segundos se passarem, me lembro seriamente de tomar cuidado com meus pensamentos. O bichano, pelo menos eu esperava que fosse de fato ele, sussurra em meu ouvido, como uma lambida sem permissão em minhas entranhas, uma série de sopros que eu não entendia, mas sabia perfeitamente o que significavam.

    Meu corpo se estremece, meu coração palpita, minha lágrimas aumentam e eu gemo de desespero, sem conseguir me mexer com tantos medos e verdades que entravam gritando pelo meu corpo e se alojavam na minha angústia. Eu conseguia sentir o gosto do grito na minha boca e minhas mãos tremiam. O barulho das unhas aumentavam, tom após tom. 

    Dedos se esparramam pelos meus cabelos, os agarram com força e puxam minha cabeça para o alto. Meu rosto molhado, trêmulo, os olhos em carne viva. Vejo a mim mesmo me olhando, como um animal que nem era digno de ajuda. Ele se agacha, segura meu queixo com força e me beija sem eu querer. Ele impõe sua língua dentro de minha boca, me abusa com saliva e sussurros que o gato outrora já havia me contado. 

    "Basta", eu pensava. E ao mesmo tempo que eu sentia nojo, eu estava entregue, com a sensação de que me despedia cada segundo de mim mesmo. Eu queria gritar e ele, o grito, continuava me beijando, me sugando, me devorando de um jeito que eu não sabia dizer não, mesmo ainda chorando. Ele berra dentro da minha boca e eu berro para dentro da minha garganta.

    Eu caio no chão, tremendo. Ele se levanta sorrindo e eu penso o quanto aquele impostor terminaria com a minha vida ali, agora. Eu não conseguia falar, e ele continuava sorrindo. Ele abre a porta, fecha os olhos e sente o cheiro de comida quentinha no ar. Eu choro, choro muito, querendo gritar por socorro, que não o deixasse entrar. Porém, ele entra. 

    Horas se passam e meu corpo, ainda fraco, tenta se recompor. Me arrasto até minha mochila, enfio a mão torta no bolso pequeno e sinto o metal gelado da chave me chamando ali dentro. Me apoio no chão, a palma da mão esquerda no piso gelado, a direita na parede de ranços e costumes, e subo me esfregando esquisito. 

    Me aproximo da porta, encosto a mão na madeira velha, ainda fraco e sem equilíbrio, encaixo a chave na entrada e a giro. Escuto o barulho grosso, quase rude. Ela trava, não se mexe. Forço uma, duas, três vezes e nada acontece, eu não conseguia abri-la. Me jogo para frente e rosno, batendo o dois punhos cerrados na porta com toda a minha vontade e desespero. Mais uma vez, eu choro. 

    Soluçando, dou três passos para trás, sinto as costas tocarem a parede do corredor. Observo o meu redor e percebo que aquela não era a minha casa, porém eu estava lá dentro. Eu havia entrado minutos atrás sem que quisesse, sem que eu pedisse. Um abuso, uma intromissão. Sinto algo roçando em minhas pernas, olho para baixo e vejo o gato preto ronronando carinhosamente perigoso. 

    Eu grito, me agacho no chão, junto os joelhos no peito, os abraço com os braços, olhos por entre as pernas, vejo o chão. Tudo de novo. Vou me dissolvendo, como um fantasma. O felino segue trocando de lados, direita e esquerda, esquerda e direita. Fecho os olhos e respiro. Choro, me recuso a me dissolver, não quero, não posso, não vou! Peço socorro e escuto o barulho da unha. Ele está contando, ele está morrendo. 

Douglas Ibanez 

(02/02/2020 - 2:32)





quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Sol Oriens

Me apaixonei pela lua

Numa noite molhada,

No meio do vale, subindo a rua, 

O sereno no rosto e a vergonha sentada. 


Eu era uma estrela de brilho virgem

Que escrevia poemas em papéis quaisquer,

Incluindo problemas em qualquer vertigem

E comendo o mundo em pequena colher. 


Mas eu não podia competir com estrelas, 

Aleatórias ao redor da lua, 

Que gritavam em quantidade de centenas, 

Centelhas de vida que clamavam ser tuas. 


Eu era um invisível só dando voltas, 

Implorando por luzes que nem suas eram,

Caminhando por ruas de incertas rotas, 

Cujos olhos me injetou, enxergou e esperam.


Então percebi, sem deleites, 

Que o sol também era uma estrela.

Sem lua que o aceite! 

Com noite extrema vazando por minha ourela. 


Para que o escuro, que pertence ao luar, 

Com tantos brilhos ao seu dispor, 

Se um dia inteiro eu me permito pintar

Antes mesmo do sol se pôr?


Com dedos pontilhados,

Desenho aquarela no tecido do céu.

Do azul ao cinza e o laranja rosado, contemplado,

Daquilo que pertence ao meu sobrepor do véu.


Você tem um bonito sol, disse a si,

Uma estrela tranquila na minha manhã.

Não havia medo das chuvas daqui,

Enquanto faziam parte deste hoje-amanhã.


E eu espero, sinceramente, que a lua diante esteja

Daquilo que a alma nos conta nos sonhos.

Que a solidão, por difícil que seja, 

Lhe reflita na água seu estado risonho.


Não chore, 

Se erga!

Pegue o que lhe consome, 

Dance na luz e se veja.


Em mim, havia razões que se foram no porto,

Admirando as cortinas do que se cobria.

O sol, outrora tão virgem, outrora tão torto,

Se viu distante, se via morto, diante daquilo que ele agora vivia.


Douglas Ibanez 

(02/01/2019 - 2h04))




segunda-feira, 28 de setembro de 2020

O Barulho do Vidro


Foi o barulho que indicou aos meus ouvidos que aquele era o limite entre minha testa e o vidro da janela do meu quarto. Obviamente que o toque daquela superfície tão transparente, e fria devido à mudança de tempo dos últimos dias, me entregava a mesma mensagem: havia algo entre eu e o lá fora.

Respiro fundo. Eu sei que vidro é vidro no fim das contas, mas havia uma certa poética, bonita até, em ver minha respiração tornando aquela coisa visivelmente invisível em algo úmido, torto e real, como se revelasse sua natureza dissimulada, que até então tentava se esconder bem diante da minha cara. 

Respiro de novo, dessa vez propositadamente para aumentar a mancha de respingo crescente, que aquele vapor que vinha de dentro de mim causava. E crescia igual doença: lenta e precariamente lutando para se impor de mim para o vidro, em uma passagem direta, rápida e extremamente contagiosa.

Eu estava vencendo, sabe? O vidro já demonstrava sinais de fraqueza, revelando sua essência turva depois que minhas gotas, de internas a externas, lavaram seu disfarce de bom moço e trouxeram à tona o ser sádico que ele sempre fora. Não havia melancolia da chuva escorrendo por ele, mas sim a minha escravidão borrada atrás da neblina entre nós dois. 

Mas até onde os meus pulmões aguentariam aquela briga? Desenho um rosto sorridente com meu dedo e vejo São Paulo exatamente por meio daquele sorriso, que parecia tão devasso quanto inocente. Sinto raiva e me arrependo de não ter desenhado também uma máscara que cobrisse aquela boca torta, que profanava aquela visão, ao mesmo tempo que me permitia enxergar mais claramente. 

Bato com a testa mais uma vez. O bar está aberto na esquina de casa e eu escuto alegria, mesmo que abafada pelo vidro. O sorriso desenhado me conta as histórias daqueles homens e eu as escuto pacientemente, já que não tem nada para fazer nos próximos meses. Vejo estrelas piscando no céu e respiro fundo pela última vez, quase um suspiro de desistência. 

Com a ponta do dedo, escrevo meu nome sobre a nova mancha que surgiu de dentro de mim no vidro. Ambos apagados, à beira do desfoco após tanto desfalque de nossas naturezas. Me solidarizo com a pobre superfície, por incrível que pareça. Não havia mais invisibilidade, tampouco intimidade preservada. 

Tudo estava perdido, sob uma neblina que eu mesmo criei com uma única respiração. O molhado da superfície já quase refletia o meu reflexo e, honestamente, aquilo seria demais para mim. Chega! Tento limpar minha arte com as costas da mão direita, mas só espalho meu nome, e o sorriso, pelo mesmo espaço. Tudo continuava sujo, turvo e continuava o mesmo.

Douglas Ibanez

(02/09/2020 - 03:11) 


terça-feira, 18 de agosto de 2020

Eu, Bissexto


O relógio não gira,
só que o tempo passa direto
pelo meus dedos,
não como areia de ampulheta,
- antes fosse! -
mas como poeira que o tempo,
esse bendito tempo,
não contou em seus segundos.
Sabe aquele resto de tempo,
tão incontável,
tão esquecível,
que do resto vira resto?
Que vira bissexto?
Pois é isso que escrevo, todos os dias,
na poeira impregnada
nas paredes do meu quarto.
Eu me sinto bissexto, desde ontem,
ou seria desde março?
Talvez desde outubro desse ano
que ainda não chegou e já se foi?
Sei lá... teve domingo também.
São quatro em quatro em anos
dentro de um único lapso de dia.
Tenho sobrevivido
e o dia 29 de fevereiro continua marcado
no calendário sem importância
do dia após dia.
Um sentimento bissexto,
completamente aleatório,
dispensável apesar de necessário,
só para que a rotação continue
em uma quarentena regada
aos olhos do que mais tememos.
E eu tenho rodado, como eu tenho (...)
e estou cansado de tanto rodar,
de tanto anseio sem definição,
das palavras escritas que caíram do teto
e se espalham em meio às roupas jogadas.
Não tem fim,
nem um começo.
E eu aqui, escrevendo para o tempo
que parte de novo e me parte de jeito,
escorrendo sem pressa nenhuma,
mas com toda a velocidade
que poderia se dispor.
Que assim seja!
Que assim seja!

Douglas Ibanez 
(18/08/2020 - 2:39)


quarta-feira, 8 de julho de 2020

Ah (...) o céu!


Eu olhei para o céu
e vi o céu.
Enchi os pulmões
com o presente que me dava,

guardando um de seus
dentro da imensidão que era
estar apaixonado pela liberdade
que o lado de dentro me permitia.

Eu me via
e ele me ampliava,
me deixava solto em minha imagem,
me amava exatamente

pela possibilidade de me livrar
de amarras que sussurram.
Ele me grita no ar,
me desenha nas nuvens,

como um pedaço de arte
forjado para ser livre.
Há grades entre nós,
há graves entre todos,

mortos e feridos,
e ele ali, me reconhecendo de volta,
me acarinhando ao dizer meu lugar,
que não se cumpre.

O amor pelo céu que eu vi,
me viu de volta e disse
o quão nele eu estava,
por em mim eu estar,

sem meios nem meios
de chegar onde eu não quiser,
pois o que eu queria me queria
e me liberava de dentro para o mundo.

Douglas Ibanez 
(12:17 - 23/04)


segunda-feira, 29 de junho de 2020

O lidar que me nasceu


O dedilhar singelo da ansiedade,
em notas de melodia
flutuando nos limites da imaginação
de minha linha periférica do sentir.

Levanto-me inteiro, pelo braço direito,
e transpasso o véu que me cobre de noite.
Sonhos inquietos num caldeirão
girando diante dos meus olhos.

São densos, periodicamente complexos,
dentro de sua individual complexidade,
com tamanha fartura de liquidez
que me escorre pelos cotovelos,

me banhando,
me encontrando
e se despedindo a cada novo toque
que deixou eternamente para trás

ao tocar o novo
e penetrar o desconhecido.
Meus dedos dançam,
meus sonhos os beijam,

e eu me envolvo numa coreografia,
com a prudência do improviso sussurrando
pelo meu corpo:
um eco e um sopro

de um depois que preciso
deixar para trás.
Eu preciso, sim, e dedilho as mesmas notas
que me consomem pelo controle.

Um abstrato girando, contorcionismo
de palavras minhas - letras que inventei!
Eu as escrevo durante o banho
e vai ficar tudo bem. Vai ficar tudo bem...

Douglas Ibanez 
31.05.2020 - 1:00


sexta-feira, 29 de maio de 2020

Grãos do Amanhã-Agora


Eu desmorono
e o fragmento escorrega
pelo meu corpo tão fraco
feito de carne e ossos,
que se sentem tão expostos
no alto de minha vulnerabilidade
sensível
ao meu próprio toque.

Nem sempre há respostas, entende?
Quando a terra desce sem motivos,
por motivos de tremores,
ela deixa suas naturezas
remetentes
para trás, num ponto de vista único,
entretanto,
descompleto, desperdiçado e espalhado.

Eu sinto o arrepio
coçando meu peito
de dentro para fora,
buscando orifícios por onde possa
desaguar sua poeira,
complexa
em sua busca pela vida
no entendimento do que vem depois.

Se ao pó tornarás,
porque o derramo?
O seguro na mão, ansioso,
soprando castelos que
se desmancham,
assim como eu.
Eu sinto os tremores,
e não me seguro.

Douglas Ibanez 
(29.05.2020 - 1:23) 

domingo, 17 de maio de 2020

O Garoto que Sabia Demais


Eu me olho no espelho e encaro,
com a sabedoria de um esquisito senhor,
um garoto que não sabia mentir
sobre o que achava de si mesmo.

Há um pesar em seu olhar solitário,
que nunca se perdeu pelos caminhos
que por aí conheceu.
Muito pelo contrário!

Somente o enriqueceu e o cobriu
de toda a certeza de que o mundo é o seu lar,
tão belo como um potinho de vidro
coberto por gotas da chuva.

Ah e os meus cabelos se alteram como alma,
tão sorridentes que brilham no reflexo,
como se escrevessem páginas mistas
de todos os amores-próprios que poderia sentir.

E há maior substantivo próprio
do que amor que próprio assim se torna,
depois de tanta simplicidade dita a si mesmo,
como uma palavra com letra minúscula?

Eu sinto o vento no rosto,
calmo como deve ser.
Inspirador aos extremos
das raízes letradas que me constroem

e o esquisito senhor me consagra,
finalmente depois de tanta graça,
como o garoto que sabia demais
e de menos e de mais um pouco ali além.

Douglas Ibanez 
(18.02.2020 - 21:14)