domingo, 31 de dezembro de 2023

Ma

É na pausa entre o tempo e o espaço que contemplo o oceano. Sentado num banco, os pés acima ou abaixo da existência, e a melancolia simbólica quieta diante dos meus olhos, tão cheia quanto vazia de qualquer significado que ela mesmo trouxesse.

O nada me contempla como uma paisagem, um estudo profético - poético - do tudo que vai sempre tê-lo: o nada. Eu o entendo e me calo, com poesia vazando pelos meus olhos, bocas e dedos, escrevendo o que vejo na sobreposição.

O sol se pondo na sombra do porto. É daquele laranja o tom que a matéria se forma, atingindo os pilares que os céus sustentam tão longe. Quando for meia-noite, entretanto, o céu continuará iluminado, coberto pela fumaça escura da natureza primordial da criação.

E foi aqui que eu guardei o que me faz bem, no vazio entre o entre e o entre, onde a quietude se torna um alento e o eu um momento de plena observação significativa do que é e o que não é, ao ver o que é visto e apreciar o seu silêncio.

Douglas Ibanez
Feliz Ano Novo! 





sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Mergulho na Honestidade

A madrugada é honesta
em suas palavras, escurecidas
como o tecido do céu
que acima se deita.

Palavras nuas,
sem vergonha do medo
e da natureza de sua pele,
cujo toque não se toca, se pronuncia.

Cruas até o limite da rima.
Tira as cobertas,
revela as simples verdades guardadas
nas mentiras que de dia foram contadas.

Eu sou escrito no poema da noite,
onde me vejo e retorno o olhar.
Os pés escorrem,
os dedos falam e a língua sente.

O vazio perfura, a expectativa vaza
e o momento é tão verdadeiro
que o silêncio que sobra se cala,
dando ouvidos à cantoria da intuição.

Soa-se belo na madrugada, sem nada.
E de repente, o que se escuta
só depende do outro,
que se deixa ir... aos sussurros.

Douglas Ibanez

13/10/2021 - 4h23



sábado, 4 de setembro de 2021

Rosa dos Ventos

Eu abro e

me permito pensar

na velocidade que penso, 

que outrora me enganou

como quem nada queria, 

mas me engolia por dentro

como dita a ansiedade. 


Eu me parto

em mil pedaços e

me permito partir 

vento a dentro, como

os farelos leves que caem 

das alturas sem medo

da partida. 


Eu me torno o

que me despi e me deixo levar

para longe o que me tornei, 

pois logo serei outro ao

retorno do vento e ele

será o mesmo que me despiu

no anseio da calma. 


Douglas Ibanez

(20/01/2021 - 1:30)

domingo, 29 de agosto de 2021

Você sabia das flores?

aos céus 

as flores se jogam. 

mãos levantadas, 

braços dançantes! 

a terra nos pés, entretanto,

sorri com a graça

de um milhão de certezas, 

tão incertas, 

que não fazia sentido nenhum tê-las.

mas a melodia...

essa estava entre os dedos

que tocavam as nuvens

e sentiam a grama

ao mesmo tempo


Douglas Ibanez

(16/08/2021)



quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

O Café

Respiro

como se o amanhã não existisse,

pois ele de fato não estará lá

até que eu abra sua porta e

a atravesse,

com um pé diante do outro.


Nem mesmo a tarde sobrevive,

quando as manhãs são destruídas

com a amargura

que anseia todo o resto.

Este ainda para chegar, 

este ainda para ir embora.


Dou um passo descalço

na paz descalça, 

que se anuncia solo

como uma respiração calma

de bom dia, 

com toda a graça que posso suportar. 


É no silêncio que sinto 

aquele amargo cheiro flutuando, 

dançando em fumaças, 

me desejando continuações 

ensolaradas de mim mesmo, 

em uma versão estranha do que ainda virá. 


Não é uma previsão, 

muito menos de preciso conteúdo, 

mas é belo em seu sentido próprio, 

como se minha intuição pudesse, 

e ela pode, 

ler nas entrelinhas do ar, 


decifrando

e colhendo 

histórias que o meu íntimo ainda 

irá me mostrar de alguma forma. 

Eu toco as narrativas 

e meus dedos são varinhas


que deixam no ar o rastro, 

os desenhos que quero seguir. 

Um artista do meu tempo, do meu desejo,

fazendo espirais de um momento

só meu, 

sem permissão para o alheio.

Douglas Ibanez 

(24/12/2020 - 8h36)

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Oração ao Nome

Em meus momentos de maior confusão, quando o tempo corria ao meu redor numa velocidade absurda, me tirando o ar e causando angústias que eu só havia visto em meus piores sonhos quando criança, eu costumava chamar nomes passados para me manterem ancorado naquele oceano, tão perto da terra à vista, diante da turbulência. 

Eles eram nomes muito diversos. Grafias e sons extremamente únicos, com barbas, cabelos longos, loiros e morenos, sorrisos inocentes e promessas de um dia daqui a um dia. Sem contar o anseio de descobertas que nunca foram e carências que me abraçaram pelas expectativas em minha cabeça de necessidade, talvez, crônica.

Só que eles me puxavam pelo pé e o que era salvação se tornou um erro. Me lembro de fechar os olhos, enquanto os monstros arranhavam por dentro as paredes do meu corpo, e fazer uma oração, mais rápida do que o meu medo poderia agir. Eu pedia pelo nome da vez. Soprava a vela e o repetia mil vezes para que ficasse, mas sem nunca realmente ficar, porque nunca estivera ali. 

Quando recebe um nome, isso quer dizer que é seu. Então porque cargas d'água eu queria o nome dos outros? Um finito punhado de letras com significado tão limitado quanto o tempo que o vento leva para bater na palma de sua mão e levá-lo para longe, deixando você finalmente perdido, rezando por um nome que não está lá. Que nunca esteve.

Por isso, a todos os escritos que já passaram, hoje eu peço licença e me recuso a lembrar de um outro nome que não seja o meu próprio, aquele que não se vai. Pois está atrelado em minhas veias, como um rio de águas escuras cheias de história. Isso não significa que nomes alheios não sejam belos ou relevantes, como árvores que brotam dessa calçada paulistana tão ambígua, muito pelo contrário! Eles me acompanham, só não são meus. 

Por isso, eu só peço a mim mesmo... me salve. Que seja você a abraçar o que me é vulnerável e o que conta histórias infiltradas no meu peito de maneira tão perpétua e imortal ao mesmo tempo. Pois é em seu nome, meu nome, que eu vejo a vida fazendo sentido, mesmo quando o medo sussurra exatamente o oposto. Sopre em meus ouvidos e me fortaleça, por favor. 

Obrigado, até aqui chegamos. 

Continuemos. 

Douglas Ibanez

(26/01/2021 - 2:31)



sábado, 7 de novembro de 2020

O Barulho da Unha

    Chego do trabalho, desço do elevador e sigo pelo corredor do andar onde moro. Numa mão, uma sacola de compras que há tempos faltavam no armário da cozinha. Já na outra, a ansiedade rolava entre os meus dedos, lutando contra o barulho das unhas batendo uma na outra, como se discutissem para decidir quem era o mais barulhento. Olho para a minha porta: familiaridade

    Suspiro, cansado. Tiro a mochila - e alguns outros pesos - das costas, a colocando na frente do corpo de maneira desengonçada. Eu abro um dos bolsos e tento pegar a chave escondida no fundo, às cegas, mas só encontro meus óculos escuros e a tampa do meu desodorante. Mexo a mão com raiva e nada, o que me faz rosnar como um bicho impaciente no meio da noite. 

    Sinto algo roçando no meu ombro, me arrepio sabendo o que viria e quando dou por mim, a alça da mochila já havia escorregado, soltando todo o seu peso sobre a minha mão. Tento segurar o que já tentava equilibrar. Fracasso. E logo tudo cai no chão com um barulho oco, no meio do corredor. Eu olho. Eu respiro. Eu mordo um pedaço de pele da minha boca. O barulhos das unhas batendo ficando mais forte. 

    Com a vontade de chorar, me sento no chão. Costas na parede gelada e a certeza de um resfriado. "Que se dane", penso e encosto a cabeça no concreto. Respiro fundo, fecho os olhos, respiro fundo e trago os joelhos para perto do peito, os abraçando com meus braços que pareciam mais longos do que eu podia imaginar. Escuto o barulho das unhas, batendo e batendo e batendo de novo. 

    Coloco a cabeça entre as pernas, abro os olhos e vejo o piso bege me encarando. Imagino o que o vizinho diria se abrisse a porta e me visse ali, em minha versão mais deprimente do dia. Aquele pensamento me arranca um sorriso, seguido de uma tremida de queixo que eu sabia que viria acompanhado de lágrimas de algum lugar. Tiro e queda: eu choro. 

    O nariz fungando me dizia que meus olhos estavam vermelhos, mesmo sem eu conseguir vê-los, por motivos óbvios. Solto uns palavrões, entre leves e pesados, para a bagunça e para mim mesmo. Naquele ponto da noite, não havia mais tanta diferença entre nós dois e eu sabia disso perfeitamente. Talvez por isso eu chorava. Como eu odiava aquela bagunça! 

    Sinto uma presença se aproximando, devagar e calmamente. Fico tenso, paralisado, minha respiração falha e a prendo como se tentasse manter o resto de ar que havia me sobrado nos pulmões. Se enroscando pelas minhas pernas, carregando toda aquela energia esquisita, um gato preto passa da esquerda para a direita e desaparece do meu ponto de vista. Eu não tinha gato, muito menos meu vizinho. 

    "Inferno", penso, sem realmente saber se fora em voz alta ou não. Porém, após segundos se passarem, me lembro seriamente de tomar cuidado com meus pensamentos. O bichano, pelo menos eu esperava que fosse de fato ele, sussurra em meu ouvido, como uma lambida sem permissão em minhas entranhas, uma série de sopros que eu não entendia, mas sabia perfeitamente o que significavam.

    Meu corpo se estremece, meu coração palpita, minha lágrimas aumentam e eu gemo de desespero, sem conseguir me mexer com tantos medos e verdades que entravam gritando pelo meu corpo e se alojavam na minha angústia. Eu conseguia sentir o gosto do grito na minha boca e minhas mãos tremiam. O barulho das unhas aumentavam, tom após tom. 

    Dedos se esparramam pelos meus cabelos, os agarram com força e puxam minha cabeça para o alto. Meu rosto molhado, trêmulo, os olhos em carne viva. Vejo a mim mesmo me olhando, como um animal que nem era digno de ajuda. Ele se agacha, segura meu queixo com força e me beija sem eu querer. Ele impõe sua língua dentro de minha boca, me abusa com saliva e sussurros que o gato outrora já havia me contado. 

    "Basta", eu pensava. E ao mesmo tempo que eu sentia nojo, eu estava entregue, com a sensação de que me despedia cada segundo de mim mesmo. Eu queria gritar e ele, o grito, continuava me beijando, me sugando, me devorando de um jeito que eu não sabia dizer não, mesmo ainda chorando. Ele berra dentro da minha boca e eu berro para dentro da minha garganta.

    Eu caio no chão, tremendo. Ele se levanta sorrindo e eu penso o quanto aquele impostor terminaria com a minha vida ali, agora. Eu não conseguia falar, e ele continuava sorrindo. Ele abre a porta, fecha os olhos e sente o cheiro de comida quentinha no ar. Eu choro, choro muito, querendo gritar por socorro, que não o deixasse entrar. Porém, ele entra. 

    Horas se passam e meu corpo, ainda fraco, tenta se recompor. Me arrasto até minha mochila, enfio a mão torta no bolso pequeno e sinto o metal gelado da chave me chamando ali dentro. Me apoio no chão, a palma da mão esquerda no piso gelado, a direita na parede de ranços e costumes, e subo me esfregando esquisito. 

    Me aproximo da porta, encosto a mão na madeira velha, ainda fraco e sem equilíbrio, encaixo a chave na entrada e a giro. Escuto o barulho grosso, quase rude. Ela trava, não se mexe. Forço uma, duas, três vezes e nada acontece, eu não conseguia abri-la. Me jogo para frente e rosno, batendo o dois punhos cerrados na porta com toda a minha vontade e desespero. Mais uma vez, eu choro. 

    Soluçando, dou três passos para trás, sinto as costas tocarem a parede do corredor. Observo o meu redor e percebo que aquela não era a minha casa, porém eu estava lá dentro. Eu havia entrado minutos atrás sem que quisesse, sem que eu pedisse. Um abuso, uma intromissão. Sinto algo roçando em minhas pernas, olho para baixo e vejo o gato preto ronronando carinhosamente perigoso. 

    Eu grito, me agacho no chão, junto os joelhos no peito, os abraço com os braços, olhos por entre as pernas, vejo o chão. Tudo de novo. Vou me dissolvendo, como um fantasma. O felino segue trocando de lados, direita e esquerda, esquerda e direita. Fecho os olhos e respiro. Choro, me recuso a me dissolver, não quero, não posso, não vou! Peço socorro e escuto o barulho da unha. Ele está contando, ele está morrendo. 

Douglas Ibanez 

(02/02/2020 - 2:32)